O vírus que asfixia algumas instituições privadas de ensino é outro e atende pelo nome de política econômica neoliberal

Para a professora Madalena Guasco Peixoto, coordenadora-geral em exercício da Contee e diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP, a política econômica, e não pandemia, é que vai levar escolas à falência

Na última quinta-feira 6, o desembargador do Trabalho Pedro Luís Vicentin Foltran determinou a suspensão das aulas presenciais na escolas particulares do Distrito Federal, que haviam sido autorizadas dois dias antes pela juíza da 6ª Vara do Trabalho Adriana Zveiter. A decisão do desembargador atendeu ao mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) após ser acionado pelo Sindicato dos Professores em Estabelecimentos Particulares de Ensino (Sinproep-DF). 

Nela, um trecho chama a atenção: embora Foltran ressalte que a ação é de natureza exclusivamente trabalhista e que, “caso as escolas particulares implementem de imediato o retorno anunciado, quem corre maior perigo de dano são os trabalhadores”, ele também acrescenta que “não é demais destacar que o rol de direitos fundamentais elencados pela Carta Magna e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem reconhece a absoluta superioridade hierárquica dos direitos à vida e à saúde sobre os direitos econômicos decorrentes da suspensão das atividades escolares”. Em outras palavras, trata-se da proteção também de estudantes, seus familiares e de toda a comunidade.

O Sinproep-DF é um dos sindicatos da base da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee que têm enfrentado, neste momento, uma luta árdua em defesa do direito à saúde e contra a irresponsabilidade de um retorno às atividades escolares presenciais sem que a pandemia da Covid-19 esteja sob controle e sem que os riscos de contaminação e morte tenham sido reduzidos. No Rio de Janeiro, também na última quinta-feira, o desembargador Peterson Barroso Simão, da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, determinou a suspensão do decreto 47.683, editado em 22 de julho pela Prefeitura do Rio, que permitia a reabertura das escolas privadas, de forma voluntária, para o 4º, 5º, 8º e 9º anos, a partir do último dia 1°. 

A irresponsabilidade da administração carioca fez com que os docentes das escolas particulares da cidade, em assembleia realizada pelo Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro (Sinpro-Rio), deflagrassem uma “greve pela vida”, dizendo não ao retorno das atividades presenciais sem que haja garantia das autoridades da saúde, da ciência e de rígidos protocolos de segurança. Segundo a decisão judicial do dia 6, a “Prefeitura está proibida de expedir qualquer outro ato administrativo para promover o retorno das atividades educacionais presenciais nas creches e escolas privadas sob pena de multa diária de R$ 10 mil imposta ao prefeito Marcelo Crivella”. 

Há uma curiosa semelhança entre os dois casos. No Distrito Federal, a tentativa do governo foi liberar a volta imediata das aulas presenciais no setor privado, desde já, ao passo que o retorno na rede pública, também sob controvérsia e ação do sindicato da categoria, está previsto para o fim do mês. Da mesma forma, na cidade do Rio de Janeiro, embora Crivella tenha permitido a reabertura das escolas particulares, não há previsão de retorno para as escolas municipais. Ao contrário, em vídeo divulgado no dia 5 de agosto, a secretária municipal de Educação, Talma Romero Suane, declarou que a retomada só acontecerá quando houver uma autorização oficial por parte da Secretaria de Saúde e do Comitê Científico.

O descompasso entre as decisões tomadas em relação à rede pública e aquelas que atingem o setor privado escancaram, de um lado, que não há mesmo protocolo seguro atualmente (senão ele valeria para todas as redes) e, de outro, que a preocupação está longe de ser com o direito à educação. Pelo contrário, a pressão de donos de escolas, sobretudo aquelas com fins lucrativos, pela volta às aulas presenciais segue a cartilha da política ultraliberal e coloca os interesses econômicos acima de todos os direitos: à educação incluso, mas também à saúde, à segurança e à vida. 

Um dos argumentos para a pressa é a crise econômica que atinge o ensino privado e que tem levado escolas à falência. Em abril, a Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep) lançou um “plano estratégico de retomada das atividades do segmento educacional privado brasileiro”. O protocolo tem sido adotado e reproduzido indiscriminadamente pelos sindicatos patronais de todo o país, sem preocupação com as especificidades da situação pandêmica e condições de enfrentamento em cada município, estado ou região.

É esse protocolo, o instrumento que o setor patronal na educação tem usado para tentar vender para as famílias a falsa ideia de um retorno seguro — que não há — e pressionar professores e técnicos administrativos para essa volta, inclusive com ameaças de demissão. Ao mesmo tempo, sindicatos patronais e donos de escolas responsabilizam os trabalhadores em educação e sua luta por seus direitos — bem como pelo direito de sobrevivência de toda a comunidade — por uma possível quebradeira que seria provocada pelos pedidos de redução de mensalidades, pela evasão escolar e pela inadimplência. Essas mesmas entidades patronais, contudo, nada fazem no sentido de cobrar ações afirmativas do Poder Público, entre as quais garantir auxílio a estudantes e seus familiares afetados pelo desemprego e pela crise econômica. 

A culpa pela crise no setor privado de ensino não é de professores e técnicos administrativos que decretem greve pela vida e acionem a Justiça para assegurar a suspensão das aulas presenciais e manutenção das aulas remotas até que o retorno seja seguro para todos. Tampouco a culpa é de estudantes que peçam redução de mensalidades ou de pais de alunos que, por ventura, estejam inadimplentes com o pagamento da escola de seus filhos. A culpa é da inoperância do governo; é da política econômica ultraliberal de Paulo Guedes, que baixa a cabeça para o setor financeiro e se recusa a socorrer pequenas e médias empresas; é do desemprego, da suspensão de contrato e/ou da redução salarial que impedem uma família  de pagar a escola ou um jovem de continuar a faculdade.

Os empresários do ensino, donos dos estabelecimentos com fins lucrativos, que enxergam a educação como mercadoria, não conseguem entender que existe uma relação obrigatória que afeta todo o setor econômico. Incentivados pela reforma trabalhista e pelas medidas provisórias editadas durante a pandemia, reduzem os salários de professores e técnicos administrativos e suspendem contratos de trabalho. Entretanto, os estabelecimentos educacionais não fazem isso sozinhos; todo o segmento patronal, em todas as áreas, tem adotado a mesma prática, o que gera, então, uma bola de neve que afeta todos os setores econômicos. Ao invés de buscarem a manutenção do emprego e a criação de mecanismos de proteção do Estado neste momento tão grave, o que fazem é contribuir, com suas ações, para aumentar a crise econômica.

Em geral, o setor econômico não faz uma análise de conjunto e pensa exclusivamente na sua porção. A culpa é, portanto, da falta de articulação política do setor patronal para cobrar soluções efetivas do governo — soluções que passam por políticas sociais para garantir a sobrevivência dos cidadãos em meio à crise sanitária e econômica. Se essa situação não se reverter, além de colocar em risco a vida de crianças, de suas famílias e dos trabalhadores, o setor privado de ensino, mesmo com o retorno que deseja, ainda terá que enfrentar a falência e o fechamento das escolas. A Covid-19 é provocada por um vírus que afeta o organismo humano e, em casos mais graves, pode levar a uma síndrome respiratória aguda e, por consequência, à morte. O vírus que asfixia algumas instituições privadas de ensino é outro e atende pelo nome de política econômica neoliberal. 

Nesta semana, uma charge mal-intencionada e de mau-gosto foi veiculada no Rio de Janeiro, mostrando uma família na praia, sem máscaras e em aglomeração. Na ilustração, essa mesma família afirma que não mandaria seus filhos para a escola devido à propagação do coronavírus. Se a intenção era ridicularizar os que lutam contra a volta das aulas presenciais e em defesa da vida, o tiro saiu pela culatra, porque quem tem o mínimo de senso crítico compreende o que está por trás da mensagem. A ideia de quem a divulgou é a de que, já que não está existindo restrição e respeito às recomendações dos órgãos da saúde, muitos vão morrer mesmo ou ficarão com sequelas graves, de modo que as escolas, na visão deles e de seu desprezo pela vida, podem também colaborar com o aumento dos casos e das mortes. 

Fonte: Carta Capital – Por Madalena Guasco Peixoto é coordenadora-geral em exercício da Contee e diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP

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