José Geraldo de Santana Oliveira,assessor jurídico da Contee, faz uma análise aprofundada da decisão do STF sobre a atualização dos créditos trabalhistas que, na sua opinião, afronta aos valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV, da CF), à valorização do trabalho humano (Art. 170, caput, da CF) e ao primado do trabalho (Art. 193, da CF).
Em sua quase cotidiana sanha de desproteger os direitos fundamentais sociais voltados ao mundo do trabalho, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar as ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) 58 e 59, e as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 5867 e 6021, bate-lhes mais um prego sem estopa, dando ampla extensão às rachaduras que já apresentam, fazendo-o em total afronta aos valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV, da CF), à valorização do trabalho humano (Art. 170, caput, da CF) e ao primado do trabalho (Art. 193, da CF).
2 Nesse julgamento, o STF limitou a correção dos créditos trabalhistas à taxa Selic, que já inclui correção monetária e juros; além disso, conferiu ao acórdão, ainda publicado, eficácia erga omnis (alcançando todos), com efeito vinculante.
3 Com essa decisão altamente nociva aos já combalidos créditos trabalhistas, a sua correção — que, até então, garantia juros de mora de 12% ao ano (1% ao mês) — fica limitada a míseros 2%, atual percentual fixado para Selic, que, repita-se, para enfatizar, engloba correção e juros de mora.
4 Se o descumprimento dos direitos trabalhistas já se constituía em lucrativo negócio — seja pelo fato de considerável parcela dos trabalhadores não os cobrar judicialmente; seja pela possibilidade de, em acordo judicial, reduzi-los a valores ínfimos; seja pela demora na execução, seja prescrição intercorrente —, tornou-se muito mais atrativo e irresistível para quem não tem compromisso social com a referida decisão do STF.
5 A danosa decisão acha-se assim exarada:
“Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente a ação, para conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 879, § 7º, e ao art. 899, § 4º, da CLT, na redação dada pela Lei 13.467 de 2017, no sentido de considerar que à atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial e à correção dos depósitos recursais em contas judiciais na Justiça do Trabalho deverão ser aplicados, até que sobrevenha solução legislativa, os mesmos índices de correção monetária e de juros que vigentes para as condenações cíveis em geral, quais sejam a incidência do IPCA-E na fase pré-judicial e, a partir da citação, a incidência da taxa SELIC (art. 406 do Código Civil), nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Por fim, por maioria, modulou os efeitos da decisão, ao entendimento de que (i) são reputados válidos e não ensejarão qualquer rediscussão (na ação em curso ou em nova demanda, incluindo ação rescisória) todos os pagamentos realizados utilizando a TR (IPCA-E ou qualquer outro índice), no tempo e modo oportunos (de forma extrajudicial ou judicial, inclusive depósitos judiciais) e os juros de mora de 1% ao mês, assim como devem ser mantidas e executadas as sentenças transitadas em julgado que expressamente adotaram, na sua fundamentação ou no dispositivo, a TR (ou o IPCA-E) e os juros de mora de 1% ao mês; (ii) os processos em curso que estejam sobrestados na fase de conhecimento (independentemente de estarem com ou sem sentença, inclusive na fase recursal) devem ter aplicação, de forma retroativa, da taxa Selic (juros e correção monetária), sob pena de alegação futura de inexigibilidade de título judicial fundado em interpretação contrária ao posicionamento do STF (art. 525, §§ 12 e 14, ou art. 535, §§ 5º e 7º, do CPC) e (iii) igualmente, ao acórdão formalizado pelo Supremo sobre a questão dever-se-á aplicar eficácia erga omnes e efeito vinculante, no sentido de atingir aqueles feitos já transitados em julgado desde que sem qualquer manifestação expressa quanto aos índices de correção monetária e taxa de juros (omissão expressa ou simples consideração de seguir os critérios legais), vencidos os Ministros Alexandre de Moraes e Marco Aurélio, que não modulavam os efeitos da decisão. Impedido o Ministro Luiz Fux (Presidente). Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber (Vice-Presidente). Plenário, 18.12.2020 (Sessão realizada por videoconferência – Resolução 672/2020/STF)”.
6 Vale trazer à baila nove objeções opostas a essa famigerada decisão pelo ministro do TST Cláudio Brandão — baluarte da defesa dos valores sociais do trabalho e da valorização do trabalho humano, nesse tribunal —, no processoTST-RR 1836-79.2015.5.09.0010, julgado pela 7ª Turma, aos 3/3/2021, não obstante votar pela sua aplicação, em obediência à tese vinculante fixada pelo STF, em julgamento conjunto das ADCs 58 e 59, e ADI 5867.
A Ementa do Acórdão acha-se assim lavrada:
“PROCESSO Nº TST-RR – 1836-79.2015.5.09.0010
A C Ó R D Ã O 7ª Turma
RECURSO DE REVISTA DO RÉU. LEI Nº 13.467/2017. DÉBITOS TRABALHISTAS. JULGAMENTO CONJUNTO DA ADC Nº 58, ADC Nº 59, ADI Nº 5.867 E ADI Nº 6.021. INCONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DA TR. LACUNA JURÍDICA. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO AO ARTIGO 879, § 7º, DA CLT. INCIDÊNCIA DO IPCA-E NA FASE PRÉ-JUDICIAL. INCIDÊNCIA DA TAXA SELIC A PARTIR DA CITAÇÃO. UTILIZAÇÃO DO CRITÉRIO DE JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA DAS CONDENAÇÕES CÍVEIS EM GERAL. ARTIGO 406 DO CÓDIGO CIVIL. CRITÉRIO ÚNICO DE ATUALIZAÇÃO. TRANSCENDÊNCIA POLÍTICA CONSTATADA. No julgamento conjunto da ACD nº 58, ADC nº 59, ADI nº 5.867 e ADI nº 6.021, o Supremo Tribunal Federal (Plenário, 18.12.2020 – Sessão realizada por videoconferência – Resolução 672/2020/STF) firmou que à atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial na Justiça do Trabalho “deverão ser aplicados, até que sobrevenha solução legislativa, os mesmos índices de correção monetária e de juros vigentes para as hipóteses de condenações cíveis em geral, quais sejam a incidência do ICPA-E na fase pré-judicial e, a partir da citação, a incidência da taxa SELIC (art. 406 do Código Civil)”. Nessa oportunidade, decidiu-se, também, quanto à modulação dos efeitos da decisão, nos seguintes termos: “(i) são reputados válidos e não ensejarão qualquer rediscussão (na ação em curso ou em nova demanda, incluindo ação rescisória) todos os pagamentos realizados utilizando a TR (IPCA-E ou qualquer outro índice), no tempo e modo oportunos (de forma extrajudicial ou judicial, inclusive depósitos judiciais) e os juros de mora de 1% ao mês, assim como devem ser mantidas e executadas as sentenças transitadas em julgado que expressamente adotaram, na sua fundamentação ou no dispositivo, a TR (ou o IPCA-E) e os juros de mora de 1% ao mês; (ii) os processos em curso que estejam sobrestados na fase de conhecimento (independentemente de estarem com ou sem sentença, inclusive na fase recursal) devem ter aplicação, de forma retroativa, da taxa Selic (juros e correção monetária), sob pena de alegação futura de inexigibilidade de título judicial fundado em interpretação contrária ao posicionamento do STF (art. 525, §§ 12 e 14, ou art. 535, §§ 5º e 7º, do CPC).” Em observância ao decidido no referido julgamento, merece reforma o acórdão regional. Ressalva de posicionamento do Relator. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido”.
Suas judiciosas objeções foram consignadas nos seguintes literais termos:
“Antes de tudo, não posso deixar de externar a profunda reserva que faço à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Por primeiro, revela incoerência interna e contraria toda a sua jurisprudência quanto ao tema, em virtude de haver reconhecido que a TR é – como sempre foi – inconstitucional, como critério de atualização dos créditos trabalhistas, por ser taxa pré-fixada e não refletir a inflação do período de apuração. Não obstante, ao definir a taxa incidente a partir da citação, adotou a Selic, taxa esta que, de acordo com o Banco Central do Brasil, é igualmente pré-fixada e não mede a inflação, tese consagrada desde 1992 (ADI 493, Rel. Min. Moreira Alves).
Em segundo lugar, por contrariar toda a fundamentação até então consagrada na jurisprudência, no sentido de que essas taxas, por não medirem a perda do poder aquisitivo da moeda, atingem o direito de propriedade do credor (art. 5º, XXII), a coisa julgada (art. 5º, XXXVI); atentam contra o princípio da separação dos Poderes (art. 2º) e o princípio da isonomia (art. 5º, caput). Todos esses fundamentos foram consagrados, de modo expresso, na ratio decidendi da ADI nº 4425/DF. Rel. Min. Ayres Britto. Red. p/ac Luiz Fux. Tribunal Pleno, julgada em 14/03/2013, e posteriormente ratificados no RE nº 870.947/SE, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 20/09/2017.
Esse último precedente, aliás, originou-se da questão jurídica em torno do índice a ser utilizado para apuração do crédito junto à Fazenda Pública no período anterior à expedição do precatório e, de acordo com as palavras do Ministro Relator, o que estava em jogo era “… o direito fundamental de propriedade do cidadão (CRFB, art. 5º, XXII) e a restrição que lhe foi imposta pelo legislador ordinário ao fixar critério específico para a correção judicial das condenações da Fazenda Pública (Lei nº 9.494/97, art. 1º-F)” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 870947, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 20/09/2017, publ. 20-11-2017. Disponível em . Acesso em: 09 ago. 2020).
Em terceiro lugar, por haver reconhecido, a mais não poder, a existência de distintos cidadãos, conforme tenham ou não o direito de recomposição plena das perdas inflacionárias: os privilegiados, que terão o direito reconhecido, e os demais, aos quais o mesmo direito será negado. Entre os primeiros, quaisquer pessoas, naturais ou jurídicas, que possuam créditos a receber junto à Fazenda Pública, inclusive magistrados e servidores (ADI nº 5348, Relatora Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 11/11/2019); entre os últimos, os empregados do setor privado.
Em quarto lugar, por haver introduzido no debate sobre a inconstitucionalidade da taxa a ser utilizada para correção monetária os juros de mora, que possuem natureza jurídica inteiramente distinta, previsão legal expressa em dispositivo não alterado pela Lei nº 13.467/2017 e, que, por conseguinte, estava fora do debate jurídico.
Em quinto lugar, por contrariar os deveres de integridade e coerência, inseridos no sistema processual brasileiro (artigo 926) e a serem aplicados por todos os tribunais brasileiros, inclusive o próprio STF.
Em sexto lugar, por ignorar a existência de percentual de 1% a título de juros de mora para outra espécie de crédito – o tributário (art. 161, § 1º do Código Tributário Nacional – o qual deveria ser adotado, caso reconhecida a necessidade de regra suplementar, diante da previsão contida no artigo 889 da CLT).
Em sétimo lugar, por haver contrariado fundamento incorporado anteriormente pelo próprio STF no sentido de que o fato de o cidadão ser obrigado a recorrer ao Poder Judiciário para receber o que lhe é devido não pode ser visto como um investimento ou negócio jurídico. São palavras do Ministro Luiz Fux, relator no RE nº 870.947.
Em oitavo lugar, por representar estímulo ao retardamento na quitação do débito e contrariar fundamento já adotado na Corte em julgamento precedente sobre o tema: “quanto mais tempo a Fazenda Pública postergar a quitação de seus débitos, menor será, em termos reais, o valor da sua dívida, corroída que estará pela inflação. Nesse contexto, é nítido o estímulo ao uso especulativo do Poder Judiciário” (Ministro Luiz Lux, Relator, RE nº 870.947).
Por fim, por contribuir para o aumento dos índices de congestionamento da execução e, em última análise, atentar contra o princípio constitucional da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII), na medida em que representa contribuição para retardar o cumprimento da sentença. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, a Justiça do Trabalho é o ramo do Poder Judiciário que apresenta o melhor desempenho na execução de suas decisões (índice de congestionamento (73%), quando comparada com os demais ramos do Poder Judiciário – Justiça Estadual – 82%; Justiça Eleitoral – 80%; Justiça Federal – 88% e Justiça Militar estadual – 93%). Doravante, com correção monetária inferior à inflação, o cenário muito provavelmente será alterado – para pior.
Apesar dessas ressalvas pessoais, não há como deixar de ser aplicada a decisão do STF, diante de sua força vinculante, e, por isso, conheço do recurso de revista, por violação do artigo 2º, caput, da Constituição Federal.
ISTO POSTO ACORDAM os Ministros da Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, CONHECER do recurso de revista, por violação do artigo 2º, caput, da Constituição Federal, e, no mérito, DAR-LHE PROVIMENTO PARCIAL para determinar que a atualização dos créditos trabalhistas reconhecidos na presente ação observe os seguintes parâmetros, adequados aos limites temporais da modulação dos efeitos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da ACD nº 58, ADC nº 59, ADI nº 5.867 e ADI nº 6.021: a) incidência do IPCA-E na fase pré-judicial; b) a partir da citação, a incidência da taxa SELIC (art. 406 do Código Civil). Por medida de economia e celeridade, com esteio no artigo 525, § 1º, III, §§ 12 e 14, do CPC, e, ainda, na decisão proferida no julgamento da ADI nº 2418 – DJE de 17/11/2016 -, considerando que o presente feito ainda se encontra na fase de conhecimento, qualquer alteração na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito das ações já mencionadas, deverá ser observada na fase de liquidação, em razão da eficácia vinculante e erga omnes própria dos acórdãos proferidos nas ações de controle concentrado de constitucionalidade.
Fica mantido o valor da condenação, para fins processuais.
Brasília, 3 de março de 2021.
CLÁUDIO BRANDÃO Ministro Relator”.
7 Igualmente, merece transcrição, aqui, os excertos da decisão tomada pela 6ª Câmara da 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, com sede em Campinas-SP, acolhendo lapidar voto do desembargador Jorge Luís Souto Maior, reconhecido madrugador na intransigente defesa do Estado de Bem-Estar Social, preconizado pela CF de 1988.
Fonte: Portal da Contee