O Amazonas atravessa a segunda semana da reabertura das escolas com ao menos 10% dos professores da rede pública estadual com testes positivos para o novo coronavírus. A informação é da Fundação de Vigilância em Saúde do Estado, que fez a testagem rápida com 1.064 profissionais da educação em atividade nos colégios nesta semana: 342 resultaram positivo, 104 deles, ou quase 10%, com o vírus ainda ativo.
Os números acenderam de vez os alarmes dos críticos do plano do governador Wilson Lima (PSC) de ser o primeiro no país a reabrir as escolas para 106.294 mil alunos em 123 escolas em Manaus, pouco mais de três meses após o pico da pandemia e o colapso do sistema de saúde. Os dois principais sindicatos que reúnem docentes e servidores da educação amazonenses, Asprom Sindical e Sinteam, dizem que a Secretaria da Educação está ignorando denúncias de casos nas escolas e mantendo os estabelecimentos funcionando. Apesar dos protestos, o Sinteam descartou, por ora, declarar greve em assembleia na quarta-feira.
“A Seduc não está cumprindo a determinação de quarentena por 14 dias, dependendo do caso, o afastamento é autorizado por somente 7 dias”, afirma a presidente da Asprom Sindical, Helma Sampaio. A dirigente também diz que a secretaria não vem seguindo seu próprio protocolo oficial que recomenda afastar todos os que tiveram contato com o contaminado. “Isso é jogar com a vida das pessoas”, segue. De acordo com Sampaio, a fiscalização do sindicato foi barrada em três unidades na quarta-feira, após a divulgação dos resultados dos testes rápidos em massa.
Se manteve as escolas abertas, a gestão de Wilson Lima recuou num ponto: adiou a retomada das aulas presenciais do ensino fundamental, prevista para a última segunda-feira. O motivo é que 40% das escolas ainda aguardam aprovação do protocolo de segurança pela autoridades. A reabertura para os menores dobraria o número de alunos em sala de aula na capital, que tem 2 milhões de habitantes. Já Prefeitura de Manaus decidiu adiar a volta às aulas da sua rede de ensino fundamental, com 242.000 alunos, para o ano que vem.
“Tem gente morrendo”
“Eu estou meio com medo ainda. Tem gente morrendo. Não queria voltar, não”, conta o estudante Felipe Rodrigues dos Santos, 16 anos, aluno do 2º ano da escola Estadual Gilberto Mestrinho. “Na escola os professores estão mandando se distanciar, mas na hora do intervalo os alunos ficam todos juntos”, diz o rapaz.
A família afirma que Felipe adotou um comportamento mais quieto e reservado durante a quarentena por medo do contágio. De volta às classes desde a semana passada, o estudante gostou da instalação de pias na parte externa da escola, uma vez que ele evita ir ao banheiro por ser “sujo e fedido”. “Eu nunca vou, só quando estou muito apertado”, afirma.
A estudante do 3º ano, Daniele Lima, de 17 anos, fala de medo de contágio, mas também está preocupada com o atraso no aprendizado: “Eu tenho medo de contaminação, porém acho bem justo o retorno das aulas até porque tem muita coisa menos necessária aberta e super lotada”. Sem celular ou notebook, Daniele está acompanhando as aulas remotas, que seguem em paralelo com as presenciais, pelo celular da mãe. O problema é que só pode fazê-lo após às 21h, quando ela chega do trabalho. Daniele chegou a se inscrever para o Enem para tentar entrar em faculdade de Direito, mas considera não fazer a prova em fevereiro por não se sentir preparada. “Está todo mundo bem atrasado em relação ao conteúdo do primeiro e segundo bimestre.”
O questionamento sobre a efetividade do ano letivo não é só dos alunos, mas também dos professores. De acordo com Eudes Melo, de 48 anos, responsável por ministrar a disciplina de sociologia em três escolas da rede estadual, com a dinâmica de rodízio adotada ―aulas às segundas e quartas para um grupo e terças e quintas para outro (as sextas-feiras são destinadas ao planejamento e preparo das aulas)—, os alunos precisam de 16 dias para completar o conteúdo equivalente a uma semana de aula. “A quem interessa esse retorno em um contexto de pandemia ainda não controlada sendo que ele não é eficaz para o aprendizado?”, questiona.
O argumento do secretário Educação do Amazonas, Luis Fabian, rebatido por Melo e por pais ouvidos pela reportagem, é o de que a retomada das aulas presenciais é necessária para que os alunos da rede pública tenham as mesmas oportunidades dos estudantes da rede privada, cujas aulas presenciais iniciaram em 6 de julho.
Modelo da Finlândia e cenário volátil
A escola em que Daniele estuda, Roderick Castello Branco, não possui tapete para higienização nem papel higiênico no banheiro masculino, um fato confirmado pela fiscalização de um dos sindicatos. A Secretaria da Educação, no entanto, informa que todas as unidades receberam os kits de higiene, com tapetes sanitizantes, e que as equipes de limpeza foram reforçadas em 50%.
O protocolo para minimizar os contágios na rede pública foi inspirado nas práticas de um dos mais renomados grupos educacionais privados do Amazonas, as Instituições Nelly Falcão de Souza (INFS). A gestora Nelly Falcão, que batiza o grupo, foi convidada a compor o comitê que ajudou a planejar o retorno das aulas, mas admite que para seguir o detalhado plano que ela traçou, inspirado a Finlândia, é preciso recursos e constância: na entrada, os alunos têm dois tapetes sanitizantes à disposição e lavatório móvel. Em seguida, passam pelo termômetro medido de temperatura e são direcionados ao dispenser de álcool em gel. A coordenadora, então, chama pelo nome um a um dos alunos, evitando que ignorem o procedimento.
O protocolo de Nelly Falcão também inclui que os sapatos fiquem do lado de fora da sala. Os alunos só entram com meia ou se levarem outro sapato só para esta finalidade. Sinalização clara, cartilha informativa ―em papel e digital― além de aconselhamento psicológico para alunos, familiares e colaboradores integram o pacote de cuidados. Por opção, os alunos que quiserem, podem continuar a estudar somente em casa. A transmissão é feita por meio de plataforma virtual, no mesmo horário de aula pelos mesmos professores que lecionam presencialmente.
A possibilidade de seguir estudando em casa também existe na rede estadual. Os pais podem mandar uma carta de próprio punho declarando que não se sentem seguros, mas o problema é que não terão acesso ao mesmo conteúdo, já que as aulas gravadas não contemplam o programado para a sala de aula. Os professores da rede estadual Marcelo Rodrigues e Eduardo Prata, membros do Coletivo Escola Família Amazonas (Cefa), grupo independente que discute educação, criticam que um esquema 100% remoto não tenha sido pensado, mesmo com 27,28% dos alunos se declarando pertencentes a algum grupo de risco em pesquisa via Google feita pela própria Secretaria de Educação.
Já a favor da volta às aulas, está o argumento sobre a situação de vulnerabilidade dos alunos fora da escola. Nelly Falcão conta que também administra uma creche municipal no bairro Redenção, zona centro-oeste, por meio de convênio com a Prefeitura de Manaus, e que decidiu retomar as atividades no local há duas semanas, por conta própria. “Eu assumi os riscos e os custos e todas as crianças seguem super bem o protocolo. Foi uma decisão baseada na necessidade das pessoas: na hora da merenda, você vê o que é a fome”, afirma. As mais de cem crianças atendidas são, segundo ela, filhas de mães domésticas em sua maioria. “Agora que as coisas estão voltando, elas precisam ter com quem deixar”, completa.
No caso de sua experiência no seu grupo privado, com 468 alunos, a professora diz que tem motivos para comemorar: “Em todo esse período, tivemos dois casos de alunos que tiveram casos na família. Suspendemos toda a turma para realmente não disseminar. Isso está no protocolo”, afirma Falcão.
Alta de mortes em Manaus
O pesquisador Jersem Orellana, epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é cético, no entanto, quanto à efetividade dos protocolos de segurança ―no mundo, várias pesquisas começam a medir os contágios na volta às aulas e na aglomeração de crianças, com diferentes resultados. “E os casos assintomáticos? Na verdade, a covid-19, na maioria das vezes, é assintomática nas crianças. Podem ter crianças que tenha se infectado e, no entanto, passou despercebido, uma vez que não apresentou sintomas”, afirma o epidemiologista.
A principal preocupação de Orellana é sobre o timing da retomadas das aulas. Levantamento feito pelo epidemiologista aponta que a decisão de reabrir as escolas ocorreu em um contexto de aumento do número de mortes por covid-19 na cidade. De acordo o especialista da Fiocruz, houve uma alta de 73% no número de novas mortes por covid-19 na capital amazonense na semana anterior à retomada das aulas. Entre 5 a 11 de agosto foram registradas registradas 19 mortes, contra a média de 11,6nas três semanas anteriores, de acordo com dados da Fundação de Vigilância em Saúde.
O especialista teme que o aumento seja o prenúncio de uma nova onda de mortalidade. Até o dia 26, 3.595 morreram em decorrência da doença em Manaus. Entre crianças e jovens de 1 a 18 anos, esse número é de 10.463 casos e 331 óbitos até a última atualização, em 17 de agosto. “Não podemos achar normal que toda semana morram 15 em Manaus e adotar o retorno às aulas”, afirma o epidemiologista da Fiocruz.
A Secretaria de Educação afirma que todo o plano aconteceu com o aval da vigilância sanitária do Estado, “após um extenso trabalho de monitoramento da covid-19 em Manaus e onde foi constatada uma estabilização da doença”. Sobre um possível aumento nos índices de contaminação, o Governo estadual afirma que “as aulas presenciais poderão ser suspensas” a qualquer momento, se isso se confirmar.
Reprodução: El País