Artigo do professor Trajano Jardim, Mestre em Ciência Política, que analisa a situação da classe operário em tempos de exploração capitalista ultraneoliberal
Elio Petri, cineasta italiano, engajado nas questões das lutas dos trabalhadores, dirigiu o filme “A classe operária vai ao paraíso”, (Itália, 1971). A história se passa na década de 1970, portanto contemporâneo ao lançamento do filme, e busca demonstrar, com fidelidade, a realidade, não só no interior das fábricas, como também nos ambientes para além das linhas de produção.
O filme conta a história de Ludovico Massa, conhecido como Lulu, um operário consumido pelo capital e cujo trabalho estranhado consome sua vida. Assim, torna-se operário-padrão, reconhecido pelo seu esmero em produzir mais e, assim, obter maiores salários, já que estes variam com a produtividade. Lulu se torna referência para os administradores da fábrica e, também, de produção, pois consegue suplantar todas as cotas imperativamente colocadas pelos patrões.
A história ficcional do século 20 bem que pode ser transladada para o nosso tempo, no momento em que há as mudanças vertiginosas nas relações de trabalho, a produção de mais-valia relativa, a partir das inovações técnico-organizacionais do capital, com a desvalorização da força de trabalho como mercadoria, a degradação do trabalho vivo, com influência na saúde do trabalhador e na resistência contingente e necessária do proletariado.
Exemplo trágico dessa ficção é a proposição do governo Bolsonaro, capitaneado pelo ministro da Economia Paulo Guedes, que quer instituir o contrato de trabalho por hora e sem FGTS e contribuição ao INSS com a nova Carteira Verde Amarela digital, que vai permitir o registro por hora trabalhada de serviços prestados pelo trabalhador para vários empregadores.
O filme de Petri é contemporâneo a nossa época e o projeto de Guedes retroage à era escravagista, a que o trabalhador era submetido, e mostra a face cruel do capitalismo, que, na ótica de Mariuti, é “um sistema essencialmente de exploração e, como tal, não pode prescindir da violência para se manter em funcionamento”.
Assim, a Carteira Verde Amarela que o governo Bolsonaro está implantando, a conta-gotas, restabelece as modernas formas de escravidão. Não haverá, para o empregador, o pagamento de encargos trabalhistas, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e da contribuição previdenciária. Dessa forma, engendram os tecnocratas capitalistas chamados pelo governo, da mesma escola dos que elaboraram a proposta de reforma da Previdência, aprovada no ano passado, que acabou com a possibilidade de aposentadoria digna para o trabalhador.
Na verdade, Guedes e seus asseclas pretendem transformar os direitos consagrados na Consolidação das Leis do Trabalho em contratos de assistência social, em uma forma similar ao sistema escravocrata de casa e comida, como contraprestação do trabalho realizado. Para o ministro da Economia, essa nova forma de exploração será uma espécie de “rampa” para o trabalhador informal ter a ilusão de subir e entrar no mercado formal de trabalho.
Na carteira, estará registrada a quantidade de horas que o trabalhador faz para cada empregador com a referência do salário-mínimo, sem qualquer garantia, até mesmo de aposentadoria, já que não haverá descontos para previdência. O objetivo do governo, na crise econômica pós-pandemia da COVID-19, é dar continuidade ao escorchante modelo ultraliberal, de uberização geral da força de trabalho, acompanhando a crise sistêmica do capitalismo mundial, e reproduz as bases que permitem a sociedade regredir à barbárie, no interior das crises endógenas do sistema de acumulação, que não são unicamente cíclicas. Assim, elas se repetem e, dessa forma, tornam-se permanentes.
Essa é uma das teses centrais do livro A Crítica do Capitalismo em Temos de Catástrofe (Editora Consequência), de Marildo Menegat, no qual afirma que “nós já estamos vivendo uma situação de barbárie permanente, onde o sistema insiste em funcionar com a mesma lógica, mesmo que a humanidade e a natureza não sobrevivam a ele”. Segundo critérios da ONU, os números da violência no Brasil já caracterizam uma situação de guerra civil de baixa intensidade.
Os números de assassinatos crescem assustadoramente no País, sendo que as vítimas das agressões são pobres jovens e mulheres pretos das comunidades. Essa violência vai favorecer a formação de uma sociedade de segunda classe, alijada do processo civilizatório, sem direitos básicos, inclusive para sua sobrevivência.
Todo esse arcabouço de retirada de direitos e de violência, perpetrada pela exploração do capitalismo na sua fase ultraliberal, estabelece o domínio total da elite financeira transnacional que, de forma agressiva e avassaladora, destrói os serviços públicos e submete os trabalhadores a um regime cruel de precarização do trabalho e os transformam em seres humanos robotizados, sem sentido de classe e consciência de organização. Como tal, em condições de superalienação, tornam-se deslumbrados e acríticos à exploração radical do capitalismo e de suas bases.
Com o avanço ultraliberal no mundo e, particularmente, no Brasil a partir de 2016, com o golpe de Estado contra a presidenta Dilma, acentuou a situação desfavorável da correlação de forças na luta entre os trabalhadores e o setor patronal. Esse fato se deu principalmente com o desmantelamento do movimento sindical ocasionado por dois aspectos basilares: a acentuada inclusão da ciência na indústria, com a participação cada vez maior do sistema 4.0 nas formas de produção, e a diminuição progressiva e acelerada dos postos de trabalho em setores fundamentais para a organização dos trabalhadores.
Assim, categorias que foram fundamentais nas grandes mobilizações nas décadas 1970 e 1980, como metalúrgicos, bancários, portuários e até mesmo funcionários das grandes empresas estatais, a exemplo da Petrobras, da Eletrobras e dos Correios e Telégrafos, tiveram seus quadros reduzidos pelas novas formas de produção ou pelas medidas intervencionistas dos governos de Michel Temer e Jair Messias Bolsonaro.
Os trabalhadores do setor privado estão migrando, de forma acelerada, para o setor de serviços, ou seja, para a “uberização”, que vem produzindo a cultura da barbárie nas relações de trabalho, “um produto do próprio desenvolvimento do capitalismo”. Contudo, é um fenômeno que deixou de ser cíclico, momentâneo, e vai se tornando permanente.
Na visão de Menegat, “elas também vão se acumulando e se tornando cada vez mais crises sistêmicas e estruturais, onde a regressão à barbárie é cada vez menos momentânea. A barbárie vai se tornando cada vez mais permanente. Na nossa época, ela é permanente. Aí é que entra a ideia do giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. O sistema insiste em funcionar, mas a humanidade não sobrevive a ele”.
Os governos do PT emergiram em meio a esse sistema de colapso dos anos 1980. Durante os quatorze anos dos governos democráticos e populares, que associados às diretrizes delineadas pela “Carta aos brasileiros”, transformaram-se em gerenciadores da crise e, por conseguinte, tutelares da regressão permanente do capitalismo, constituindo-se, assim, indiretamente, gerenciadores da barbárie. Resultado das experiências nas mesas de negociações dos anos 1970 e 1980 e das administrações municipais, em que a política desenvolvida favoreceu muito mais ao segmento patronal.
Ainda segundo Menegat, “essa forma de administração desenvolve o conceito de governabilidade social, que é tornar viáveis pessoas que, do ponto de vista social e econômico, eram inviáveis” e na medida que “ele desenvolve o conceito de governabilidade social, que é tornar viáveis pessoas que, do ponto de vista social e econômico, eram inviáveis”, permite às camadas que estavam abaixo da linha da pobreza, comer, vestir-se e ter acesso à escola para seus filhos, ou seja, um mínimo de condições de existência social, segundo um padrão civilizatório, mesmo que em padrões rebaixados.
O golpe jurídico-parlamentar que apeou Dilma Rousseff do poder em 2016 criou condições para um retrocesso jamais visto na história das relações de trabalho no Brasil. Estão sendo criadas formas abstratas, em que trabalho, mercadoria e dinheiro deixaram de ser objetos permanentes e se transformaram em uma representação social definida, de eliminação de direitos, por meio da uberização de toda a cadeia produtiva, com novo sistema de controle do processo de trabalho, que levará os trabalhadores, embora a sua acumulação em dezenas de anos lutas e conquistas, a sua autodestruição como classe.
Diante dessa perspectiva do gerenciamento algoritmo da produção, que favorece formas obscuras da relação de trabalho, o trabalhador exerce suas tarefas de forma unipessoal e isolada, em atividades virtuais, o que tornará as condições de mobilização e de sindicalização de uma determinada categoria muito mais difícil, pois vai exigir dos dirigentes sindicais a busca de novas formas. Aliando-se ao processo de uberização, há o sistema de terceirização, que descaracteriza as profissões, já que estas passam a ser contratadas por empresas alheias ao seu trabalho de origem.
Esses processos de flexibilização e precarização do trabalho atingiram contingentes de milhões de trabalhadores desprotegidos socialmente, sem nenhuma garantia, até mesmo de salários e sem a proteção das organizações sindicais, que dificilmente sobreviverão nesse terreno adverso.
Assim, o caminho da “classe operária ao paraíso” foi obstruído pelo ultraliberalismo e, por certo, para chegar lá, outros processos de luta terão de ser retomados ou reinventados, em meio à barbárie que se acelerara com as políticas econômicas levadas a efeito pelo ministro Paulo Guedes, que abriu a porta do inferno.
Quais serão esses novos processos de luta? Só o tempo dirá.