A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee, que representa cerca de 1 milhão de professores e técnicos administrativos que atuam na educação privada em todo o Brasil, posiciona-se publicamente contra a decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, tomada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) N. 323, ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), contra a Súmula N. 277, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que assegura a ultratividade (aderência definitiva), das garantias constantes de acordos e convenções coletivas de trabalho, mesmo após o vencimento destes instrumentos normativos.
O mundo do trabalho foi tomado de assalto, com espanto e melancolia, ao dia 14 de outubro corrente, com essa decisão, provocada por uma ação do setor patronal da educação privada, o qual conhecemos tão bem e que envolve não apenas os empresários, mas o próprio capital aberto internacional que há anos se apropria cada vez mais da educação brasileira, financeirizando-a, oligopolizando-a, desnacionalizando-a e transformando-se em mercadoria.
O assalto e o espanto devem-se aos seguintes fatores:
A nova redação da Súmula N. 277 do TST, assegurando a ultratividade das normas coletivas, foi publicada no Diário de Justiça Eletrônico (DJE), edição do dia 25.10.2012; a ADPF foi protocolada no dia 27.6.2014.
Por que somente aos 14 de outubro de 2016, quatro anos após a publicação da Súmula, e mais de dois, do ajuizamento da ADPF, foi proferida decisão liminar suspendendo a eficácia daquela? Por que conferir a esta decisão efeito ex tunc (retroativo à publicação da Súmula) se a jurisprudência do STF há muito já se sedimentou no sentido de que os efeitos de suas decisões são ex nunc, ou seja, a partir delas?
Por que a referida decisão foi tomada, de forma inusitada, uma semana após o ministro do STF que a tomou jantar com o presidente da República e com o ex-presidente Fernando Henrique, para com eles discutir a reforma trabalhista, perseguida com sofreguidão pelo empresariado, sendo o fim da comentada ultratividade uma das prioridades deste?
Como, no mundo político, não há acaso, mas, sim, orquestrações, não é possível acreditar que esta medida seja mera coincidência. Não há como não se afirmar que se trata de algo encomendado, milimetricamente planejado e executado.
Vale salientar que, em 2009, o STF, no julgamento AI 731.954-RG, que discutia a constitucionalidade da mesma Súmula N. 277 com a redação anterior, que limitava a integração das cláusulas de instrumentos normativos de trabalho ao seu período de vigência, fixou tese de que a sua integração, ou não, em definitivo, é de natureza infraconstitucional, cabendo ao TST dirimi-la, o que é inclusive registrado pelo ministro Gilmar Mendes em sua decisão sob comentários.
Por que agora que o TST sedimentou o entendimento de incorporação definitiva das citadas garantias, por meio da nova redação da Súmula N. 277, a matéria adquiriu natureza constitucional, não tendo mais o TST competência legal para decidi-la?
Os atos e os fatos parecem falar por si mesmos. O ministro, na sua decisão, além de desrespeitar, de forma acintosa, os ministros do TST que aprovaram a Súmula — objeto da contenda —, acusou-os de ziguezaguear no tocante à matéria.
Para ficar com a metáfora do ministro, é forçoso concluir que enquanto o TST ficava no zigue, ou seja, negava a ultratividade das normas, ele estava correto e merecia respeito, e a matéria por ele decidida não possuía natureza constitucional. Porém, quando passou para o zague, isto é, garantiu a comentada ultratividade, tornou-se objeto de contestação, de ataques, e a matéria, como num passe de mágica, revestiu-se de natureza constitucional.
Em sua maléfica decisão, o ministro chega ao extremo de dizer que a ultratividade das normas coletivas beneficia somente uma das partes da relação de trabalho: os trabalhadores; e é prejudicial à outra: o empresariado. Para usar o jargão do Direito, o ministro, a rigor, afirma que a Súmula N. 277 quebra a paridade de armas entre essas partes, tornando o empresariado a parte mais frágil. Com o devido respeito ao ministro e, principalmente, ao cargo que ele ocupa, esse argumento soa como escárnio e total afronta e desprezo aos trabalhadores, por quem ele nunca demonstrou qualquer apreço.
A melancolia do mundo trabalho, com a realçada decisão, fundamenta-se no seguinte:
Como falar em valorização das negociações coletivas no contexto brasileiro, de 12 milhões de desempregados; de ampla e irrestrita possibilidade de demissão por denúncia vazia do contrato de trabalho; de total impossibilidade de se fazer greve, em decorrência das reiteradas decisões judiciais de abusividade, de fixação de percentual de trabalhadores que a ela não podem aderir, correspondente a 80% do total — às vezes, até a 100%, como no caso do metrô de São Paulo, em 2015 —, de interditos proibitórios; e de nenhuma punição para as sistemáticas e progressivas práticas antissindicais das empresas e de seus sindicatos?
Como falar em valorização de negociações coletivas se, a partir de agora, com esta famigerada decisão, a cada data-base, as negociações coletivas, caso haja, começarão da estaca zero, pois que as cláusulas contidas nos instrumentos coletivos de trabalho perderão, automaticamente, a sua validade, ao fim de sua vigência?
Como falar em valorização de negociações coletivas se o ajuizamento do dissídio coletivo — que sempre foi alternativa dos sindicatos ante a costumeira recusa patronal em atender às suas reivindicações — somente é possível com a concordância patronal que, por óbvio, nunca houve nem haverá?
Frise-se que a ultratividade das normas coletivas garantida pela Súmula, taxada de demoníaca pelo ministro Gilmar Mendes, a rigor, representa o pálido equilíbrio nas relações de trabalho no tocante às negociações coletivas. Assim sendo, porque, verificando-se a quase sistemática recusa patronal em negociar novo instrumento normativo de trabalho, os trabalhadores não ficavam no limbo, ou seja, sem as garantias dos instrumentos anteriores, pois que estes eram prorrogados até a assinatura de novo, que os confirmasse, modificasse e/ou revogasse.
Com a decisão do ministro Gilmar Mendes, esse equilíbrio será irremediavelmente rompido, haja vista a automática revogação das normas contidas nos instrumentos normativos à data de seu vencimento.
Ao contrário do que ele insinua, em sua satânica decisão, segundo a qual o fim da ultratividade das normas incentivará e facilitará o processo negocial, pode-se afirmar, categoricamente, que não haverá mais negociação coletiva. Ora, o único recurso de que dispunham os sindicatos para forçar o empresariado a com ele negociar era a ultratividade; rompido este e não havendo nenhuma punição à recusa patronal em negociar e formalizar novo instrumento, nenhum patrão demonstrará interesse na negociação.
Como acreditar que o STF, efetivamente, cumpre a sua precípua função de guardião da CF se um de seus ministros, com uma única solitária penada, penaliza cerca de 60 milhões de trabalhadores que possuem contratos de trabalho formalizados?
Se o pleno do STF, composto por 11 ministros que, a teor do Art. 102 da CF, são os guardiões dela, confirmar a decisão do ministro Gilmar Mendes, por mais que se diga o contrário, estará decretando o fim dos valores sociais do trabalho, que são o quarto fundamento da República, como preconiza o Art. 1º, inciso IV, da CF.
Por mais que se perore de forma contrária, a eventual confirmação da repudiada decisão pelo Pleno do STF afirmará, com letras indeléveis, que, no Brasil, somente valem os valores da livre iniciativa; os do trabalho, nada valem.
Mediante tal possível confirmação, que motivos terão os trabalhadores para acreditar no STF e no Estado Democrático de Direito, por ele “guardado”? A única resposta razoável para esta indagação, se se fizer necessária, é a seguinte: nenhum. Ao reverso, terão todos os motivos para acreditar que a Justiça, ao menos no Brasil, não é cega; é, sim, caolha, somente enxergando capital, e nada mais.
Com a palavra, os outros dez ministros do STF.
Brasília, 21 de outubro de 2016.
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee